Todos os passeios têm a sua história. Gosta-se mais de uns do que de outros, sofre-se mais nuns do que noutros. Mas uma coisa é certa, é na simbiose entre a aventura e o espírito de sofrimento que vamos buscar o prazer tão reconfortante destas jornadas, que, além de reforçarem os laços de amizade, vão proporcionando momentos de rara beleza, onde ficamos a conhecer um pouco mais do nosso País (e já agora do país de nuestros hermanos) e das suas gentes.
No que me diz respeito, este foi um dos passeios mais bonitos que os Trinca Pedras fizeram, mas também um dos mais duros. Os 77 quilómetros percorridos, na companhia do pessoal do BTT Almonda, e os quase 1800 metros de acumulado não são suficientemente representativos da dureza do percurso, que durou aproximadamente 9 horas, tendo a volta acabado por volta das 19h00, já com a noite caída sobre Santo António das Areias, pequena aldeia que serviu de ponto de partida e de chegada, situada no sopé da Serra do Marvão.
Logo pela manhã, tinham-me informado que os primeiros 20 quilómetros seriam os mais difíceis. O que alguém se esqueceu de dizer foi que os primeiros 20 quilómetros seriam duríssimos, com um acumulado acima dos 1200 metros, já que na primeira parte do percurso, ainda em solo português, e logo no início, tivemos de “atacar” a Serra do Marvão (867m), para ao início da tarde começarmos o calvário na Serra Fria (953m). Estas duas serras fazem parte do sistema montanhoso do Parque Natural da Serra de São Mamede, que além da Serra de São Mamede, com os seus 1025 metros de altitude, tem ainda a Serra de Castelo de Vide (762m). Opções que ficarão para uma outra oportunidade.
A subida ao Marvão foi dura, mas logo esquecida assim que chegámos à vila do Marvão, com uma lindíssima vista, sob um sol primaveril, vislumbrando-se, num dos horizontes, o manto branco da Serra da Estrela.
Após a visita cultural àquela aldeia, onde nem faltou uma ida à cisterna do Castelo do Marvão, o grupo iniciou a descida até à Portagem, em caminho empedrado e com muita pedra solta, que desaconselhava largar-se o travão em demasia, testando a resistências das bikes (e já agora dos braços).
Já na Portagem, local simpático e a sensivelmente 10 quilómetros da fronteira com Espanha, “trincas” e “almondas” preparavam-se para começar a subida para a Serra Fria, mas não sem antes haver uma acesa e produtiva discussão filosófica sobre a melhor forma de se atravessar o Rio Sever. O resultado não foi consensual e um pequeno grupo de “iluminados” lá decidiu optar por uma solução pouco ortodoxa, que incluiu andar com as bikes às costas, perdendo-se algum tempo, o que originou de imediato o raspanete do Brites.
Minutos depois, e já pela frente o segundo pico do dia, eis que surge um homem, idoso e sapiente, a avisar a juventude para os perigos que se avizinhavam: Uma caça ao javali.
Perante este alerta, reagrupámo-nos, mas, verdade seja dita, pouco crédito dei ao aviso que tinha ouvido, porque lá pensei que seriam alguns “gatos pingados” atrás dos animaizinhos. Só algum tempo depois é que comecei a perceber a dimensão da caçada. Na verdade, tínhamos entrado numa autêntica “War Zone” entre caçadores e javalis, com um grupo de “malucos” em cima de bikes no meio de potencial fogo cruzado.
Mais adiante, e após uma instrutiva conversa com um caçador, lá chegámos à conclusão que não era boa ideia andar num local com cerca 150 caçadores, com dedo no gatilho, prontos para disparar contra qualquer coisa que mexesse.
“Trincas” e “almondas” bateram em retirada e começaram descer até à estrada, num percurso com muita pedra solta, para o qual, conta quem viu, o Brites não teve as mãozinhas suficientes (parece que houve alguém que se meteu à sua frente, segundo o Brites).
A caçada obrigou o grupo a fazer um desvio por alcatrão, antes de apanhar novamente o “track” em direcção ao pico da Serra Fria. No entanto, nem todos optaram por este caminho, tendo seguido outro percurso, penso que devido a alguma confusão, que é perfeitamente normalmente nestas situações (ao meio da tarde, quando reagrupámos, falei com o Nuno, que me tinha dito que nem sequer se tinha apercebido da separação do grupo).
Seja como for, eu lá fui um dos que segui com o grupo que começou a subir para a Serra Fria, convencido de que seria mais um desafio que, com mais ou menos dificuldade, se venceria. Como estava enganado.
Digo-vos que foi das subidas mais difíceis que fiz até hoje. O piso era péssimo, com muita pedra solta, e nalguns momentos, o nível de inclinação era muito acentuado. Além da longa distância da subida, andámos tipo montanha russa. Segundo o Rui me disse, chegámos aos 800 metros, para descer aos 600 e, finalmente, na estucada final, voltar a subir acima dos 900 metros, já em terras espanholas.
Outras das principais causas do calvário que estávamos a viver, foi o factor psicológico. Atrás de cada monte escondia-se um outro monte, e quando finalmente, já no limite das minhas forças, esperava ter chegado ao topo da Serra Fria, logo seguido do João T, eis um cenário simplesmente avassalador (as fotos do Brites são elucidativas).
Perante mim tinha um vale de dimensões astronómicas que me separava do meu destino, os tais 900 e tal metros de altitude. Ora, tinha pela frente uma descida mortífera de pedra solta que me levaria dos 800 aos 600 metros e depois uma parede que nos levaria acima dos 900.
Cá em baixo, no vale, parei para retemperar forças antes de voltar a subir. O João nem sequer parou e lá foi ele em grande forma. Eu aproveito a boleia, mas esqueçam, a determinado ponto é o João a empurrar a sua Scott e eu a minha Lapierre. Se querem que vos diga, não conheço ninguém que conseguisse subir aquilo tudo em cima da bike.
Quando finalmente chegámos ao topo, a sensação é fabulosa, e apercebemo-nos da dimensão do vale que acabáramos de vencer. Com grande esforço, lá vimos uns pontinhos em baixo, os nossos companheiros a iniciarem a derradeira subida.
Tal e qual um verdadeiro calvário, eu fiquei com as minhas marcas, das quais nunca cheguei a recuperar. E aquele sentimento de satisfação quando se chega a um pico destes, rapidamente se transformou num tormento. Penso que o João Pires é um dos que me compreende bem.
Eu só pensava numa coisa: Tinham passado apenas 20 quilómetros. Faltavam 50 (Outra crónica se seguirá).
A beleza raiana, os crentes do Garmin e, finalmente, o Paraíso
No topo da Serra Fria, o João T. e eu esperávamos pelos outros, com o vento a soprar e o frio a fazer sentir-se. Algum tempo depois, surgiram os restantes heróis, também eles satisfeitos pelo obstáculo que acabavam de vencer.
Com o horário a apertar, e sempre com o Brites a impor o ritmo, rapidamente se iniciou uma longa, mas rápida descida, até a uma pequena aldeia, onde quase não se viu vivalma. Não fosse um velho conversador, com um sotaque bastante português, diga-se, a passagem por aquela aldeia não teria história.
A partir daqui foi a pedalar num ritmo mais elevado, porque havia muitos quilómetros a percorrer e era importante que este grupo se reagrupasse com os restantes, que estavam também em terras espanholas…algures. O Paulo, uma espécie de terceiro elemento nesta aventura, lá ia surgindo em pontos estratégicos, como uma espécie de aparição.
Finalmente, todos os “trincas” e “almondas” se reuniram, por azar (ou talvez não), junto a um café, o que fez perder mais algum tempo, para desespero do Brites. Mas, o tempo de espera, sempre deu para partilharmos as experiências da Serra Fria com os restantes elementos que não tinham vindo connosco nessa aventura.
Estômagos aconchegados e conversas em dia, o próximo destino é Valencia de Alcántara, uma pequena cidade raiana da Extremadura, que fica sensivelmente a 15 quilómetros da fronteira. Aqui, o grupo entra num ritmo elevado, dá uma volta à cidade, para iniciar uma das fases mais bonitas de toda a volta.
De Valencia de Alcántara até à fronteira a paisagem é simplesmente deslumbrante, muito variada e recheada de pontos de interesse.
O ritmo seguia elevado e as forças começavam a faltar, porque ao contrário da balela que me tinham dito no início da volta, há muito que já me tinha apercebido que de plano esta zona não tinha nada.
O subir e descer constante, já depois de muito acumulado nas pernas, começava a fazer estragos. As pequenas subidas já se tornavam penosas e as muitas horas em cima da bicicleta já começavam a saturar.
Porém, à medida que a tarde se ia prolongando, a luz ficava lindíssima e a paisagem ganhava contornos misteriosos, numa relação muito íntima entre nós e a natureza.
A boa disposição reinava e enquanto se pedalava, também as conversas entre os vários elementos do grupo iam fluindo. Neste ambiente de tranquilidade eu, o Brites, juntamente com outros “almondas”, fomos ficando para trás. Ao iniciarmos uma descida já tínhamos perdido de vista os restantes elementos do grupo, o que nos colocou um problema quando chegámos a uma bifurcação.
Ir pela esquerda ou pela direita? Era a pergunta que se colocava, mas ninguém conseguiu contactar os outros que lá iam à frente. Por isso, tivemos que confiar no nosso instinto e depois de termos analisado os rastos dos pneus (estilo CSI), lá optámos seguir pela direita. Mas, quando ainda estávamos hesitantes, até porque àquela hora, já não dava muito jeito enganar-nos, eis que aparece o Paulo, com o seu mapa e o Garmin, a confirmar que íamos pelo caminho certo.
Mais confiantes, lá continuámos a descida até reunirmo-nos com os restantes. A partir daí foi a rolar até chegarmos à linha férrea que nos iria conduzir directamente à fronteira, mas não sem antes haver um furo, o que obrigou a uma paragem forçada para um lanche, bem à beirinha dos carris. Como alguém disse: “com tantos locais bonitos para termos parado para um lanche, logo tínhamos que lanchar neste sítio”. Mas, resolvido o furo, lá seguimos pela linha férrea, para fazer a travessia para Portugal sobre o Rio Sever pela ponte ferroviária.
Deixada a linha férrea, e já a rolar em Portugal, estamos num local muito bonito, passando por uma casa, a qual é servida por uma estrada sem saída. Um cantinho de Portugal, com muito verde, árvores e sem ninguém, mas o deslumbre com a envolvente rapidamente se esvaneceu, quando encontrámos pela frente uma subida que naquela altura do campeonato foi mortífera.
Chegados ao topo, numa estrada de alcatrão, lá continuámos a rolar, e no que me diz respeito, estava mais motivado, a pedalar bem, já a pensar no final e no jantar que nos esperava. No entanto, neste passeio, aprendi uma lição: o que pode parecer fácil, é de esperar que não o seja.
E assim aconteceu. Quando já todos nos preparávamos para fazer um atalho por alcatrão até Santo António das Areias, eis que o Rui decide ser um purista do Garmin e optar (pela esquerda) pelo track original. Resultado: mais uns quilómetros a pedalar e, para muitos, já de sofrimento.
Aberta a Caixa de Pandora, também o João T. decidiu levar a sua interpretação do track ao limite e lá nos meteu por mais uns montes, já com a noite a cair.
Quase derreados, chegámos a uma estrada de alcatrão, junto de um povoado, onde parámos por uns minutos para ver qual o caminho para o nosso destino.
Ao fundo, vi duas pessoas, a quem fui perguntar qual o caminho mais directo para Santo António das Areias. Dadas as indicações pelos simpáticos autóctones, seguimos de imediato até chegarmos à placa a dizer Santo António das Areias.
Quando entrámos naquela localidade, mais um momento de pura religiosidade e de devoção ao Garmin por parte do João T. e de alguns (poucos) crentes, que se meteram por um atalho íngreme, esburacado, escuro e sabe-se lá mais o quê. Curioso, que nesta fase do campeonato já o Rui tinha perdido a sua fé nas virtudes do track dado pelo Garmin e, juntamente com os restantes, lá foi pelo alcatrão, enfrentando ainda uma subida dura pela frente. Mas, apesar dos diferentes credos religiosos, o Paraíso surgiu para todos em forma de banho, jantar e cama.
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